07 Julho 2023
Às vezes, a inovação está em criar um medicamento com sabor de morango. Até há pouco tempo, as únicas fórmulas disponíveis para bebês e crianças com HIV eram amargas, com um alto teor de álcool e exigiam refrigeração. A Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas (DNDi) começou a intervir e desenvolveu um tratamento de fácil administração e mais agradável para as crianças.
Fez o mesmo com a “doença do sono” transmitida pela mosca tsé-tsé. Junto com seus parceiros, a organização descobriu com sucesso um medicamento, o fexinidazol, fazendo dele o primeiro tratamento totalmente oral para essa doença parasitária. Antes, o único remédio disponível era um derivado do arsênico que matava 5% dos pacientes.
Assim, alcançaram até 12 tratamentos para seis doenças mortais, em 20 anos de história. Esse trabalho foi reconhecido com o Prêmio Princesa das Astúrias de Cooperação Internacional 2023, que será entregue à organização no próximo mês de outubro.
Em entrevista ao jornal El Diario, Luis Pizarro, diretor executivo da iniciativa, explicou como trabalham e suas principais conquistas desde a fundação da iniciativa por várias instituições, entre elas, Médicos Sem Fronteiras, que dedicou parte dos fundos do Prêmio Nobel para explorar um modelo novo e alternativo para pesquisar doenças negligenciadas.
A maior conquista? “Ter demonstrado que existe uma forma de pesquisa e desenvolvimento diferente da tradicional, baseada no lucro”, diz o médico chileno-francês e especialista em saúde global.
A entrevista é de Icíar Gutiérrez, publicada por El Diario, 05-07-2023. A tradução é do Cepat.
Do que estamos falando quando nos referimos a doenças negligenciadas ou esquecidas?
A OMS lançou esse conceito há mais de 20 anos. Nós insistimos em que mais do que as doenças, negligenciados são os pacientes porque são doenças que atingem, na grande maioria dos casos, pessoas que vivem em regiões isoladas e com poucos recursos, e que estão expostas a parasitas, vírus e bactérias, devido às condições precárias em que vivem.
São negligenciadas, em primeiro lugar, pelos sistemas de saúde, que muitas vezes não conseguem chegar a essas regiões, mas, sobretudo, por um sistema de pesquisa e desenvolvimento de medicamentos baseado principalmente no lucro. Ou seja, o que leva um laboratório farmacêutico a desenvolver um remédio, hoje, é o lucro hipotético que poderá obter. E, lamentavelmente, as pessoas que hoje não têm recursos para poder comprar esses medicamentos não são o objetivo principal dessa pesquisa.
Até que ponto se trata de uma questão de pessoas empobrecidas? Que relação há com a pobreza?
A primeira coisa é a vulnerabilidade dessas pessoas a tais doenças. Por exemplo, ao não terem acesso à água potável – se a higiene é difícil de ser mantida, doenças infecciosas são transmitidas – ou andarem descalço. Tudo isso está ligado às condições muito difíceis que enfrentam.
A segunda coisa é que não representam um objetivo interessante para aqueles que querem ganhar dinheiro, porque não serão as primeiras pessoas a comprar esses remédios. De alguma forma, é um flagelo duplo.
Por ano, quantas pessoas morrem por esses tipos de doenças?
Existe uma diferença entre o que se chama de doenças negligenciadas e doenças órfãs ou raras. Estas últimas, em termos de volume, são muito poucas. Então, quando se efetiva desenvolvimento aqui, é mais para não deixar ninguém de lado. As doenças negligenciadas, ao contrário, afetam, hoje, mais de 1,5 bilhão de pessoas no mundo, ou seja, 20% da população mundial. É muita coisa.
Existem algumas que são letais. Por exemplo, a doença do sono, com a mosca tsé-tsé que transmite um parasita chamado tripanossomíase e que evolui no corpo até chegar ao cérebro e a pessoa entra em coma e morre. É uma doença letal que não tinha tratamento até fins do século XX. A única coisa que existia era um produto que vinha do arsênico, que era injetado e rompia as veias dos pacientes. Um em cada 20 morria com o tratamento.
Quando a organização foi criada, há 20 anos, desenvolver um tratamento para essa doença foi justamente um dos primeiros objetivos. Conseguimos chegar a um tratamento que é um comprimido que se toma uma vez e com isso esperamos eliminar esta doença.
Existem outras doenças como a leishmaniose cutânea, que cria enormes feridas na pele que levam a estigmas e problemas de saúde mental. Não é que as pessoas morram, mas os impactos psicológico e social também são grandes. Portanto, existem diferentes tipos de impacto.
Em que consiste o trabalho da iniciativa?
Todo o trabalho que fazemos começa pelo paciente. O resultado dessa pesquisa, antes de tudo, tem que trazer uma solução e mudar a vida dos doentes. Caso contrário, não faz sentido. É preciso entender quais são as necessidades dessas pessoas. É o caso que comentávamos sobre a doença do sono, era importante que o tratamento fosse um comprimido.
É preciso pensar também na logística, porque estamos falando de lugares onde há muito calor e umidade. Também é necessário ter um tratamento que seja resistente a essas condições e que seja fácil de transportar até o local onde os doentes estão.
Depois, é preciso que os diferentes atores com quem vamos trabalhar se sentem juntos. Para a doença do sono, trabalhamos com o laboratório farmacêutico Sanofi. Pedimos que nos deixassem ver sua biblioteca de moléculas químicas, que podem ser futuros medicamentos. Nós as examinamos até encontrar a que parecia mais promissora e a que desejávamos pesquisar mais a fundo.
É necessário procurar aqueles que também podem fornecer recursos financeiros. Nesse caso, por exemplo, a Fundação Gates foi muito importante e alguns países como a Inglaterra contribuíram financeiramente.
Também é preciso buscar atores acadêmicos e científicos. Trabalhamos muito com o Instituto de Saúde Pública, no Congo, e com acadêmicos na Europa para poder realizar essa pesquisa. A partir daí, primeiro, começamos com os testes em laboratório, depois, em animais e, então, em humanos, em campo, assim que surge o remédio.
É necessário passar pelos órgãos reguladores, registrá-lo, comprovar sua qualidade e a partir daí, junto à OMS, garantir que cheguem ao país e aos pacientes. É um caminho bastante longo, com diferentes etapas, e para nós é importante que todos os atores que têm algo a oferecer – setor público, setor privado, setor acadêmico – contribuam e nós desempenhamos um papel de coordenação para que isso funcione.
Desenvolveram 12 tratamentos para seis doenças, entre elas, a doença do sono e a leishmaniose. Em quais outras se concentraram?
Conseguimos dois tratamentos para a malária que foram realmente revolucionários e um tratamento para a hepatite C, que foi importante porque existia, mas era caríssimo, custava mais de 50.000 dólares. Aqui, o objetivo foi, sobretudo, oferecer um tratamento muito mais barato, custa entre 200 e 300 dólares.
Lançamos também um tratamento para o HIV/AIDS em crianças. Evidentemente, o HIV não é negligenciado, mas na Europa e nos Estados Unidos quase não existem mais crianças infectadas.
O problema é que agora todas as crianças estão principalmente na África e justamente por serem crianças de famílias pobres, não representam mais um incentivo para a pesquisa de tratamentos adaptados para crianças.
Então, junto com Médicos Sem Fronteiras e o laboratório indiano Cipla, desenvolvemos um tratamento especial para as crianças que é fácil de tomar e tem sabor de morango. Antes, era um tratamento amargo que não gostavam. Agora, é muito mais agradável para as crianças.
A organização se concentra na parte de desenvolvimento, mas seu propósito também é tornar os tratamentos acessíveis. Como garantem que isso aconteça em termos de produção? Como negociam essa questão?
É essencial que o produto da pesquisa seja acessível ao maior número de pessoas. O que negociamos, antes de tudo, desde o início – não só com a farmacêutica, mas, em geral, com todos os parceiros que se juntam a esses projetos –, é que o conhecimento científico e os dados que vamos produzindo, com toda essa pesquisa, sejam acessíveis para o maior número. Só com o fato de pesquisar vai se criando um conhecimento que precisa ser compartilhado pela comunidade científica e isso é importante.
Depois, os medicamentos são produzidos. Desde o início, nós fizemos as companhias farmacêuticas assinarem um compromisso de que, se o venderem, que o preço seja o mais baixo possível para que não represente uma barreira em termos de acesso e que, se não venderem, façam doações, passando pela OMS, para que possam chegar ao país.
Por exemplo, no caso da doença do sono, o laboratório Sanofi doa esse medicamento e a OMS o torna acessível a todos os países africanos que a sofrem. Claramente, negociar desde o início é fundamental. Buscamos estimular fortemente.
Frente ao sistema comercial de pesquisa e desenvolvimento, promovem o conhecimento aberto e colaborativo.
Sim, é o que se conhece como open science (ciência aberta).
Qual foi a maior conquista desses 20 anos de sua organização?
O fato de ter demonstrado que existe uma forma de fazer pesquisa e desenvolvimento diferente da, digamos, tradicional, baseada no lucro. Podemos contribuir com novos tratamentos sem ter essa cenoura na frente, que são o dinheiro e o lucro.
O que traz mais esperança em relação ao futuro?
Hoje, lamentavelmente, não temos um tratamento tão eficaz como o da doença do sono para a de Chagas, uma doença que já está muito presente na Espanha. Tomara que o Prêmio Princesa das Astúrias nos traga resultados positivos e nos permita mobilizar mais para alcançar um tratamento contra a doença de Chagas.
O segundo desafio é ainda mais global, a mudança climática, que está tendo um impacto terrível nas doenças infecciosas. O mosquito que transmite a dengue está se espalhando brutalmente. Nós o temos circulando no Mediterrâneo, nos países do sul, no meu país, o Chile. E, hoje, não há tratamento para a dengue e outras doenças que o aquecimento global trará.
Temos que redobrar nossos esforços para poder responder a essa urgência climática e ao que significará em termos de saúde. Espero que sejamos capazes de reagir e conseguir remédios, por exemplo, contra a dengue.
Espero que a comunidade científica realmente aprenda as lições do que aconteceu com a COVID-19, que não caiamos nos mesmos erros do passado e que sejamos capazes de ter um sistema internacional que leve em consideração essas noções de acesso equitativo para o mundo todo.
Qual é a principal dificuldade que encontram?
Por serem doenças negligenciadas, uma das barreiras é que não interessam nem mesmo aos países onde essas pessoas vivem. Sou crítico, por exemplo, dos países latino-americanos que não têm dado a devida importância a essas doenças. Trabalhamos muito com Brasil, Argentina, Colômbia e Bolívia ou Guatemala, na América Central. Esperamos ter o Chile também, e que países como Peru, Equador e México, pouco a pouco, sejam incorporados a essa dinâmica regional.
No plano internacional, os bancos de desenvolvimento e as grandes potências internacionais avançam, às vezes, pensando na necessidade instantânea, que tem impacto político imediato, e não necessariamente investem em um projeto a longo prazo. Desenvolver um tratamento contra a doença do sono levou mais de dez anos porque a pesquisa é longa. Conseguir manter um compromisso de todas essas entidades financeiras a longo prazo, ano após ano, é também um esforço muito importante.
Em terceiro lugar, esperar que os laboratórios farmacêuticos entendam que, por um lado, existe o mercado que possuem e o lucro que querem obter, tudo bem. Mas, por outro lado, existe a responsabilidade social que também possuem, e que esperamos que os leve a compartilhar o resultado de sua pesquisa e a se envolver cada vez mais com organizações como a nossa para avançar neste campo.
Qual é o papel da Espanha no apoio à Iniciativa Medicamentos para Doenças Negligenciadas?
A Espanha foi muito próxima do projeto. Organizações como Médicos Sem Fronteiras, ISGlobal e o Instituto de Saúde Carlos III nos apoiaram muito. O Governo espanhol, através da Agência de Cooperação Internacional (AECID), teve um acordo com a DNDi, no passado [de 2007 a 2012]. Lamentavelmente, isso acabou há alguns anos e estamos tentando retomar essa colaboração.
Espero que este prêmio também permita acelerar o processo de aproximação e tomara que quando formos receber o prêmio, em outubro, possamos ter algo muito mais concreto com o Governo espanhol e obter um apoio político e financeiro mais forte. Este semestre haverá a presidência espanhola da União Europeia e também temos conversado para ver como isso pode servir para promover uma agenda ibero-americana de saúde.
A vacinação global contra a COVID-19 foi uma grande conquista da ciência, mas esteve marcada por uma enorme desigualdade no acesso. Até que ponto o modelo de pesquisa e desenvolvimento farmacêutico ficou exposto? O seu modelo é a alternativa?
É preciso ser humilde em tudo isso, porque é muito complexo. A forma como a comunidade internacional reagiu mostra a falta de governança a nível da saúde global. Criou-se o Acelerador ACT, com os pilares diagnóstico, tratamento e vacinas. Foi um dispositivo de cima para baixo e foi confiado a uma ou duas organizações a coordenação com a OMS, com um papel não muito claro.
Foi formado na urgência e houve coisas positivas, mas mostrou que não estávamos preparados em termos de governança global para responder a uma crise desse tamanho. Então, a primeira coisa é a necessidade de se organizar muito melhor. É algo que está sendo falado agora: o tipo de plataforma que existirá depois da COVID-19 e que nos permitia estar muito mais preparados para a próxima pandemia.
Defendemos que deve haver uma plataforma muito mais inclusiva, com os diferentes atores que têm algo a contribuir. Nós, por exemplo, contribuímos em termos de pesquisa e desenvolvimento para termos moléculas que possam ser testadas no campo com relativa rapidez, mas também propondo uma forma de negociar com os cientistas, com os laboratórios, para que a questão do acesso esteja dentro dos termos das condições a serem assinadas. Mas, outros atores também desempenham um papel. O trabalho coletivo conduz aos melhores resultados.
São necessários centros de pesquisa que estejam preparados para lançar testes com rapidez. Contribuímos para a criação de uma rede de centros clínicos, principalmente na África, mas também no Brasil e na Índia, que puderam começar a testar tratamentos que se esperava que pudessem funcionar para o COVID-19 com muita rapidez. Essa organização, a Panther, continuará existindo para poder realizar esses ensaios clínicos em países que até agora eram deixados de lado para avançar na pesquisa da, por exemplo, febre de Lassa ou a Mpox.
Nos Estados Unidos e na Europa, foram realizados ensaios clínicos imediatamente e isso acelerou o acesso a vacinas e tratamentos. É importante que os testes possam ser feitos em todos os países, não apenas nos ricos, porque isso também limita muito o acesso.
Depois, a nível da produção, estamos conversando com colegas africanos, de modo especial, mas também com Malásia, Brasil e Tailândia, para ver como se pode potencializar a produção local e evitar que esses países fiquem sempre dependentes da indústria que está muito longe e que não dá prioridade a esses países quando produzem medicamentos. Há muito mais a fazer.
De todas as lições que a pandemia deixou, quais erros não devem ser cometidos novamente?
A situação de desigualdade. Seria realmente um desastre, uma falha não só político, mas também moral, sabendo que existem formas de se antecipar e de preveni-la. Esperamos que dentro das negociações atuais do tratado de pandemias, a comunidade internacional introduza a necessidade de condições de acesso equitativo para todos.
Então, quando se trata de investir em doenças infecciosas em países como a África, não estamos ajudando apenas as populações mais negligenciadas desses países, mas também participamos da proteção de todos nós. Foi o que vimos com a Mpox, por exemplo, que é uma doença que existe há anos na República Democrática do Congo e a encontramos na Europa e nos Estados Unidos.
A saúde global implica que enquanto não houver pesquisa na África, Ásia e América Latina, em lugar algum estaremos a salvo de que algo possa ocorrer. É investir para todos nós.
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“As doenças negligenciadas afetam mais de 1,5 bilhão de pessoas no mundo”. Entrevista com Luis Pizarro - Instituto Humanitas Unisinos - IHU